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A Arte da Transformação

Recentemente tive a oportunidade de fazer um curso de cutelaria artesanal. Para quem não faz ideia do que seja, imagine aqueles filmes medievais onde existe a figura do ferreiro, sempre ao lado da forja, munido da sua marreta e a indispensável bigorna. O oficio da cutelaria lembra em muito esta cena, claro que transportada aos tempos atuais onde ferramentas elétricas auxiliam em algumas etapas do processo, mas a alma do trabalho ainda se mantém na personalidade e habilidade de quem o executa.

Aos que nunca ouviram falar de cutelaria, sugiro que façam uma busca pela internet e garanto que encontrarão toda a longa história desta nobre arte que acompanha o homem através dos séculos e se faz útil ainda hoje.

O curso em questão era sobre a produção de uma faca de caça, também chamada de hunter. Todas etapas do processo de confecção foram executadas, sendo assim, no primeiro dia de curso eu tinha em mãos um pedaço retangular de aço com aproximadamente 12cm x 6cm x 1,5cm. E no último dia eu voltei para casa com uma bela faca com 23,5cm de comprimento e cabo tipo pistol grip esculpido em Jacarandá da Bahia.

A força bruta

Como um lenhador ou um pedreiro, o ferreiro também inicia seu trabalho com a força bruta. Através do calor e da força é que ele vai transformar um simples pedaço de aço em algo útil e belo, um objeto que no final, será uma extensão do artista, pois irá conter seu sangue, seu suor e sua personalidade.

A força necessária no início do processo é descomunal. Não tenho dúvidas que muitos desistiriam de todas as experiências posteriores apenas pelo sacrifício físico necessário nesta primeira etapa de confecção da peça.

A precisão

Aos poucos aquele bloco de aço vai tomando forma e a força bruta se transforma em precisão. Ainda é necessário se utilizar de alguma força, porém as batidas do martelo passam a ser dadas de forma mais planejada. O artista movimenta quantidades de material para onde deseja, criando áreas mais finas, mais largas, porém sempre preocupado com o alinhamento e a harmonia do todo.

Agora com volumes de massa diferentes em cada parte da peça, o calor também deve ser controlado, certas partes devem ser mantidas longe do calor para evitar a descarbonetação e, consequentemente, a perda de qualidade do aço. Nesta etapa do processo se percebe a importância da paciência. Uma única batida no local errado pode estragar todo o trabalho e por isso cada movimento deve ser pensado.

Os mais experientes trabalham como se o aço incandecente e a marreta fossem parte de si, sabendo exatamente onde a força deve ser aplicada para moldar o metal à sua vontade.

O forjamento deixa bolhas e dores musculares, mas esta era só a primeira etapa. Através da força se transformou um mero pedaço de aço em algo único, mas que ainda está longe da finalização.

Aparando as arestas

Agora é a hora da ferramenta elétrica, a lixadeira. É nela que serão removidas as marcas da marreta e o formato final da peça será definido, mas embora seja um equipamento extremamente útil que agiliza em muito a produção da faca, ela exige muita atenção e cuidado do cuteleiro, pois um segundo a mais em contato com a lixa, ou uma angulação errada pode ser o suficiente para desalinhar tudo e até mesmo inviabilizar um projeto. O domínio e o correto uso da lixadeira é um aprendizado a parte que definitivamente demanda muita dedicação e atenção do aprendiz.

Paciência e esmero

Por melhor que seja o equipamento disponível, uma peça artesanal de qualidade irá demandar uma grande dose de trabalho manual. Penso que a partir do momento que nos dispomos a fazer algo, devemos focar todas nossas energias e habilidades nesta tarefa para executá-la da melhor forma possível alcançando a NOSSA excelência. Só assim estaremos encontrando e superando nossos limites.

Todos os detalhes e acabamentos da peça serão alcançados manualmente com o uso de lixas e mais lixas. Acredito que este seja o processo mais demorado dentre todos os necessários para a produção de uma faca artesanal. É aqui que o cuteleiro irá provar o seu esmero, pois todos os riscos das lixas anteriores devem ser eliminados gradativamente reduzindo o grão da lixa até o acabamento desejado.

O caminho é longo

Ainda existem outros vários processos como a têmpera onde damos a dureza ao aço, a confecção da guarda que exige uma grande precisão e é quando descobrimos que todos os ângulos de 90 graus do ricasso devem estar perfeitos para se encaixarem corretamente. O desenho e todos detalhes do cabo…

Mas meu objetivo era tentar transmitir que assim como fazemos com o aço, devemos trabalhar nosso corpo e nossa mente buscando novas verdades e descobrindo novos horizontes. Não é algo simples e muito menos rápido, e obstáculos serão erguidos, não para deter, mas para testar a determinação com que perseguimos este ideal.

Este texto é de um simples aprendiz que recém descobriu um novo mundo, e apenas iniciou sua jornada no longo caminho do conhecimento. Antes de realmente fazer minha primeira faca, eu conhecia os processos e as teorias, mas há um enorme abismo entre estes dois mundos. Citando o personagem Morpheus do filme Matrix: “Cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”.

Percorra os seus caminhos.